O que fui eu; homem ou semi-deus? Quantas vezes crédulo disse ser ateu, pensando ser regente do meu destino? Pois agora ocupo espaço no meu pensamento, fingindo solidão ou desatino.
Não amanheceu em flora e fauna, outro ponto focal, visando minha alma; tiro meus olhos da janela e sinalizo o teto, algo de anormal nas telhas, no borrões de barro, e nas velhas figuras que parecem ser aquilo que eu acabei de inventar...
Amarro meus dilúvios em pontas de talismã, as preces precoces me fizeram sonhar, e das manhãs de insônia me quis perder a atenção.
Ouço um chamado tardio, ainda que coberto de previsões, me desmancho em frases soltas, prontas ou apáticas, não que me falte verbo ou oração, mas o anjo que podia me ouvir estava em outra dimensão.
Atravesso o tempo como bolha de sabão, reproduzo o sol, canalizo as luzes pra minha retina, me lanço descompassado ao vento, sem trajetória ou rumo e quando mais ou menos certo, aproximadamente previsível... invisível: sumo.
E por que as nuvens não param no lugar?
E por que a gente tem tanto medo de amar?
Vai saber... qualquer dia a gente pode se encontrar.
E vamos ser uma canção tão velha que acabaram de inventar.
Péssimo
ResponderExcluirPassagem da noite
ResponderExcluirÉ noite. Sinto que é noite
não porque a sombra descesse
(bem me importa a face negra)
mas porque dentro de mim,
no fundo de mim, o grito
se calou, fez-se desânimo.
Sinto que nós somos noite,
que palpitamos no escuro
e em noite nos dissolvemos.
Sinto que é noite no vento,
noite nas águas, na pedra.
E que adianta uma lâmpada?
E que adianta uma voz?
É noite no meu amigo.
É noite no submarino.
É noite na roça grande.
É noite, não é morte, é noite
de sono espesso e sem praia.
Não é dor, nem paz, é noite,
é perfeitamente a noite.
Mas salve, olhar de alegria!
E salve, dia que surge!
Os corpos saltam do sono,
o mundo se recompõe.
Que gozo na bicicleta!
Existir: seja como for.
A fraterna entrega do pão.
Amar: mesmo nas canções.
De novo andar: as distâncias,
as cores, posse das ruas.
Tudo que à noite perdemos
se nos confia outra vez.
Obrigado, coisas fiéis!
Saber que ainda há florestas,
sinos, palavras; que a terra
prossegue seu giro, e o tempo
não murchou; não nos diluímos.
Chupar o gosto do dia!
Clara manhã, obrigado,
o essencial é viver!
(Fonte: Carlos Drummond de Andrade. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004, p. 132-133)
Há tinha lido essa. Maravilhosa
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