quinta-feira, 14 de maio de 2020

Que não me falte oração.

O que fui eu; homem ou semi-deus? Quantas vezes crédulo disse ser ateu, pensando ser regente do meu destino? Pois  agora ocupo espaço no meu pensamento, fingindo solidão ou desatino.

Não amanheceu em flora e fauna, outro ponto focal, visando minha alma; tiro meus olhos da janela e sinalizo o teto, algo de anormal nas telhas, no borrões de barro, e nas velhas figuras que parecem ser aquilo que eu acabei de inventar...

Amarro meus dilúvios em pontas de talismã, as preces precoces me fizeram sonhar, e das manhãs de insônia me quis perder a atenção.

Ouço um chamado tardio, ainda que coberto de previsões, me desmancho em frases soltas, prontas ou apáticas, não que me falte verbo ou oração, mas o anjo que podia me ouvir estava em outra dimensão.

Atravesso o tempo como bolha de sabão, reproduzo o sol, canalizo as luzes pra minha retina, me lanço descompassado ao vento, sem  trajetória ou rumo e quando mais ou menos certo, aproximadamente previsível... invisível: sumo.

E por que as nuvens não param no lugar?
E por que a gente tem tanto medo de amar?
Vai saber... qualquer dia a gente pode se encontrar.
E vamos ser uma canção tão velha que acabaram de inventar.

3 comentários:

  1. Passagem da noite

    É noite. Sinto que é noite
    não porque a sombra descesse
    (bem me importa a face negra)
    mas porque dentro de mim,
    no fundo de mim, o grito
    se calou, fez-se desânimo.
    Sinto que nós somos noite,
    que palpitamos no escuro
    e em noite nos dissolvemos.
    Sinto que é noite no vento,
    noite nas águas, na pedra.

    E que adianta uma lâmpada?
    E que adianta uma voz?
    É noite no meu amigo.
    É noite no submarino.
    É noite na roça grande.
    É noite, não é morte, é noite
    de sono espesso e sem praia.
    Não é dor, nem paz, é noite,
    é perfeitamente a noite.

    Mas salve, olhar de alegria!
    E salve, dia que surge!
    Os corpos saltam do sono,
    o mundo se recompõe.
    Que gozo na bicicleta!
    Existir: seja como for.
    A fraterna entrega do pão.
    Amar: mesmo nas canções.

    De novo andar: as distâncias,
    as cores, posse das ruas.
    Tudo que à noite perdemos
    se nos confia outra vez.
    Obrigado, coisas fiéis!
    Saber que ainda há florestas,
    sinos, palavras; que a terra
    prossegue seu giro, e o tempo
    não murchou; não nos diluímos.
    Chupar o gosto do dia!
    Clara manhã, obrigado,
    o essencial é viver!

    (Fonte: Carlos Drummond de Andrade. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004, p. 132-133)

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  2. Há tinha lido essa. Maravilhosa

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